sexta-feira, 24 de julho de 2009

Entre cá e lá.

Quero agora dormir e que todos os meus canais de sangue, urina, suor sejam vapor e os meus ossos, depois de totalmente comprimidos e asfixiados pelo rio contínuo de lágrimas, quebrem. Quebrem para depois vomitar os cabelos que se dissolvem na água que continuamente me escorre pela boca. Quebrem e se transformem em lampejos de borboletas brancas em permanente rodopio e redemoinho que se movem durante o dia como uma nuvem de poeira albina. Quebrem e sejam ondas de plâncton que compõem e traduzem o grupo cósmico marinho que não mais espelha pacificamente as constelações, mas as completa. Assim, para além da flutuabilidade positiva estática das estrelas que se regem por aparências e distâncias-luz que nada contêm e falam sobre si, surge uma flutuabilidade negativa dos milhões de pontos lumínicos que estão permanentemente a alterar a posição entre si e se movem agitadamente no espaço, tal qual os reflexos na superfície da água ou no fundo do oceano, impostos pelo Sol.
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Joga-se pelo prazer do jogo. Pelo simples prazer de vestir inicialmente uma personagem, e saber despi-la, para adoptar logo outra e assim ter o distanciamento de circular num enredo de vários óculos que se confrontam e ir com isso alagando as palafitas que suportam o futuro castelo. Essa fortaleza verga-se ao calendário, já que é este que dita a destreza e rapidez com que a ficha sucede a ficha. Quando desperta a dança dos reis as muralhas sobem vertiginosamente e a volúpia embriaga o tempo, lançando as caricas da sorte à sua própria sorte. Logo na ressaca, vem o vício dos sinais e com as palavras os torreões e todo o império se rendem ao nada.
No chão me deixo e aprendo a jogar com o não calendário, com a noite, sobrepondo cada grão de areia a cada dia. Precipito-me de novo e adultero as regras do jogo, terminando de uma só vez esse castelo de areia que levo numa mão lá no alto, enquanto atravesso o oceano a nado. Aparentemente chegamos intactos ao outro lado. Mas esqueci-me do balão. Volto. Enquanto caminhamos rumo às despedidas, apercebo-me que ele pertence ali. Porque sente os cheiros como que pela primeira vez. E simultaneamente se lembra de ganhar ali forma e carregar no seu ventre todos esses aromas que o transportam para os mais diversos desejos de alguns e espaços de todos. E decido entregar o meu companheiro de guerra a alguém de paz, que terá a paciência e sabedoria de alargar essa pele, propagando no ar uma orgia de sonhos e esbatendo qualquer contorno nítido do conhecimento, dos sentidos e da mente. Só assim conseguirei assegurar o diálogo da memória do cá com as experiências do lá, estabelecer uma rede de acontecimentos que se encadeiam e reconhecer o seu propósito.
Uma criança! Entrego o balão a uma criança! E como quem pega o primeiro papagaio, e sente todo o seu peso entre os dedos, estende a mão e liberta-o. É assim que surge essa bolha, bem mais flexível e moldável ao nosso corpo, que apesar de se distender à medida que avança no céu, abraça uma indomável leveza, dissolvendo as barreiras eu-criança. O balão desaparece. Não importa se estoira e há chuva de sapos, se é perfurado pelos raios de sol, soltando os seus perfumes até ao fundo dos oceanos, se lança fumos que chegam às alcovas dos deuses dos incas…..
Imaginamos todos os destinos do balão enquanto pescamos. Tenciono partir em breve. E a criança falou. Mesmo quando andarmos em e de costas (o)postas no mar, não estaremos mais afastados, porque esse oceano, apesar de superficialmente espelhar tudo quanto há acima dele, suga a alma das coisas e engole tudo quanto há no ar, rebatendo todas essas linhas e planos num único ponto, lá em baixo, nas profundezas. E a criança deduz que não é no espaço que há extraterrestres, mas sim no mar, onde pouco foi explorado pelo homem e nada se viu. E mesmo o som, que se propaga muito mais intensamente que aqui, não se sabe de onde vem. Esse mar , que pretende dar vida aos barcos, anula-a à superfície e camufla-a na aparente passividade do espelho. Os seus olhos e humores estão presos no fundo, onde a pressão da água destrói até mesmo as sombras. Só depois desse lugar talvez a gravidade das coisas termine e se possa cheirar a terra tal como ela é. E o balão, se chegar a cair e mergulhar no oceano, deslizando até não ser mais que um ponto, sentir-se-á uno e completo, projectando-se logo na lua, e oferecendo-lhe mais um daqueles abismos ou ebulições, ou perfurará a terra dando-lhe um aspecto de queijo suíço, ou cuspirá bolinhas e nuvens de espuma do centro da terra, que farão chegar o calor à superfície…Então poderei sempre saber onde estamos e de onde viemos.
Nisto um peixe-balão morde a isca. Tiramo-lo da água e começa a inchar, inchar, inchar…Catching the big fish. Escuto incessantemente na cabeça “sou caipira!”.
Mergulhamos sem destino e somos baptizados.

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