segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Da política da bicharada ao "sim" sagrado

Das Três Metamorfoses
«"Vou dizer-vos as três metamorfoses do espírito: como o espírito se transforma em camelo, o camelo em leão e, finalmente, o leão em criança.
Há muitas coisas que parecem pesadas para o espírito, para o espírito forte e paciente habitado pelo respeito: a sua força exige um peso, o maior peso.
'Que são essas coisas pesadas?', pergunta o espírito forte. Dizei-o, heróis, para que eu o tome sobre mim e a minha força se alegre.
Não será porventura isto: humilhar-se para fazer sofrer seu orgulho? Deixar brilhar a sua loucura para escarnecer da sua sabedoria?
Ou então isto: abandonar a própria causa quando se celebra a vitória? Subir às altas montanhas a fim de tentar o tentador?
Ou ainda isto: alimentar-se das bolotas e da erva do conhecimento, e obrigar a alma a passar fome pelo amor da verdade?
Ou isto: estar enfermo e despedir os que consolam, e juntar-se com os surdos que nunca ouvem o que queres?
Ou isto: descer até à água lodosa, se for a água da verdade, não afastando nem as rãs frias, nem os sapos escaldantes?
Ou isto: amar os que nos desprezam e estender a mão ao fantasma no preciso momento em que ele nos quer meter medo?
Todas estas coisas, que são as mais pesadas, o espírito forte toma-as sobre si: tal como o camelo que corre pelo deserto com a sua carga, assim ele se apressa para o seu deserto.
Mas no mais solitário deserto realiza-se a segunda metamorfose: agora o espírito transforma-se em leão, quer conquistar pela força a sua liberdade e ser senhor no seu próprio deserto.
Procura aqui o seu último senhor: quer ser o inimigo do seu senhor e o inimigo do seu último Deus; quer medir forças com o grande dragão e conquistar a vitória.
Qual é o grande dragão que o espírito já não quer chamar nem senhor, nem Deus? 'Tu deves', é o nome do grande dragão. Mas o espírito do leão diz: 'Eu quero.'
'Tu deves' impede-lhe o caminho, resplandecente de ouro, é um animal de escamas; e em cada escama brilha em letras de ouro: 'Tu deves.'
Valores milenários brilham nestas escamas, e o mais poderoso de todos os dragões fala deste modo:
'Brilha em mim, o valor de todas as coisas. Todo o valor já foi criado...e todo o valor criado encontra-se em mim. Na verdade, não haverá mais 'eu quero'.
Assim fala o dragão.
Meus irmãos, porque será necessário o leão no espírito? Não bastará o animal de carga, pronto para a renúncia e para o respeito?
Criar valores novos - mesmo o leão não está apto: mas tornar-se livre para uma nova criação - eis o que pode fazer a força do leão.
Ganhar o direito de criar valores novos é a conquista terrível para um espírito paciente e respeitador. Na verdade, esse espírito decerto vê nisso um roubo e uma atitude de ave de rapina.
Outrora amava o 'Tu deves' como o mais sagrado dos bens e agora é nesse mesmo bem que deve encontrar a loucura e arbitrariedade, a fim de conquistar depois de um rude combate o direito de se libertar deste laço; para exercer semelhante violência, é preciso ser leão.
Dizei-me, porém, irmãos, que poderá fazer a criança, de que o próprio leão tenha sido incapaz? Porque terá ainda o feroz leão de se transformar em criança?
A criança é inocência e esquecimento, um recomeçar, um jogo, uma roda que gira por si própria, um primeiro movimento, uma afirmação santa.
Sim ao jogo da criação, irmãos, é preciso ser uma santa afirmação; então o espírito quer agora a sua própria vontade; tendo perdido o mundo, conquista o seu próprio mundo.
Disse-vos as três metamorfoses do espírito: como o espírito se transformou em camelo, o camelo em leão, e finalmente, o leão em criança."
Assim falava Zaratustra, e morava nesse tempo na cidade que se chama Vaca Malhada.»
Assim Falou Zaratustra, Nietzsche

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